Na era do individualismo, ser gentil com desconhecidos causa estranhamento
Esses dias, estava eu
na fila do restaurante da USP (o famoso "bandejão") quando
um amigo me apresenta a outra pessoa, e, ela perguntou a mim a frase
corriqueira: "oi, tudo bem?", e eu respondo com naturalidade: "tudo, e
com você?". Ao responder dessa forma, essa pessoa ficou
bastante surpresa com a minha postura, o que ficou demonstrado no seu
olhar à mim, e perguntei o porque do choque. Ele me responde desta
forma: "as pessoas nos dias de hoje jamais perguntam "e
você?", apenas respondem "tudo bem".
Isso me fez refletir
sobre algumas questões importantes, de como as pessoas vem perdendo
os modos, a compostura e as maneiras de tratar os seus semelhantes. A
deferência com o próximo tem sido cada vez mais relegado ao segundo
plano, visto como algo obsoleto, anacrônico, descabido e "careta"
por alguns. Em vez de uma deferência rígida a nossa sociedade age
com uma indeferência insolente.
Em uma sociedade
atomizada, onde o indivíduo tem a possibilidade de se desvincular de
seus laços tradicionais e criar e recriar, construir e destruir
infindavelmente suas identidades dentro do espaço-tempo limite de
sua vida, a tradição e valores também sofrem o mesmo processo de
revaloração, redimensionamento e de desvalorização. Isso em seu
lado positivo permite que o ser possa ter um leque maior de escolhas
de quem ser, do que quer ser e de como deseja se portar e moldar-se.
A moda é um exemplo social claro dessa maleabilidade da identidade
contemporânea, fruto de uma cultura igualitária que permite a
intercambialidade de .
Porém,
em seus aspectos peversos, esse desenraizamento do indivíduo, fruto
de uma hipermodernidade (discordo do uso do termo “pós-modernidade”,
estamos, ao meu ver, vivendo apenas uma nova nuance do processo de
modernização, não vivendo uma superação desse processo –
talvez de aspectos dele) desenraizadora e atomizante, justamente por
ser “fluida”, como diria Zygmunt Bauman, fragmentando as relações
tradicionais, também se perde o interesse pelo outro, pois esse ser
é fugídio, passageiro na vida de cada um, não mais sendo uma
figura presente como componente integrante da vida dos indivíduos,
seja por vínculos familiares, hierárquicos, trabalhistas ou
sociais.
Essa
não-vinculação social tornou-se obsoleto todos os tipos de
protocolos, deferências, signos que diferenciam os outros através
dos gestos, vestuário, jeito de andar, passando a ser vistos não
mais como parte da formação e do lustro intelecto-comportamental do
ser, mas apenas símbolos de poder e de diferenciação que cabe
serem quebrantados pela sociedade igualizante, porém, não
igualitária.
Se um
homem durante o Antigo Regime era diferenciado e criado de acordo com
o estamento de nascença (os protocolos e ritos nobres da corte como
exemplo) e o homem moderno do século XIX e XX pelo mérito de obter
uma posição de destaque dentro da sociedade, na sociedade
hipermoderna nada disso deve se manter erguido. Tanto a posição de
nascimento tanto o mérito são atacados por acadêmicos e o
establishment (imprensa, filmes, novelas) como manifestações de
uma dominação elitista na sociedade, que deve ser prontamente
abolida, ou ao menos restringida ao máximo possível.
O que se
vê no lugar de diferenciadores como o nascimento e o mérito é o
culto ao homem mediocritas,
o homem mediano e medíocre. Para que isso possa se realizar, cabe
destruir a ideia das claras diferenciações da alta e baixa cultura,
negando em princípio a cultura elevada como “elitista”,
“reacionária” e buscando igualar a cultura vulgar (no sentido de
comum) ao posto dos grande exemplo a ser seguido e reproduzido. Para
isso, na língua, deve desaparecer o diferencial entre o que é culto
e coloquial, dizendo ser “preconceito linguístico” ensinar a
forma culta, reduzindo o papel da linguagem apenas a comunicação
cotidiana. Agora o “nós vai” e “nois vem” passa a ter o
mesmo valor do que os mais belos versos camonianos.
Na educação, ensinar às crianças o pensamento mais elevado de
filósofos, literários e poetas que o mundo produziu passa a ser
visto como uma educação que é “positivista” e “elitista”
porque “não dialoga com a realidade destas crianças”. Então,
ensinar versos do Mano Brown é o ideal para esse tipo de pensamento,
Shekespeare e Homero no máximo, citados como seres distantes que um
dia existiram, quase como se fossem seres de outro planeta, não
escritores decisivos para a construção narrativa, de arquétipos de
personagens e formológica de qual se deriva o pensamento e escrita
ocidental.
Na
música, letras de funk são elevadas a nível de “voz da periferia
que fala da realidade”, enquanto melodias e letras de uma Elis
Regina são apenas músicas enfadonhas que merecem ficar no
ostracismo.
Com
isso, não surpreende que vivemos um período onde a autora desses
versos como “Eu
sei que você já é casado/ mas me diz o que fazer/ Porque quando a
piroca tem dona é que vem a vontade de fuder/Então
mama, pega no meu grelo e mama/Me chama de piranha na cama/Minha xota
quer gozar, quero dar, quero te dar” seja
considerada uma “grande pensadora contemporânea”, e que
escutemos da boca de estudantes da maior universidade da América
Latina, a USP, que fazer funk é tão difícil quanto fazer música
clássica...
Se
tudo é relativo e perecível, o tratar do outro como ser, e os
sistemas organizados pelos homens durante o tempo para garantir que
isso aconteça, tais como o protocolo, os atos e diálogos gentis
(mesmo que sendo apenas meras formalidades) também o são. ara a
hipermodernidade não passa de enfadonho ato que deve ser
desconstruído Para igualitarizar as pessoas, como é típico, se
mediocriza cada vez mais os homens, ou seja, vamos destruir esses
códigos opressores que nos coagiam socialmente a ter um tratamento
respeitoso a todos, que nos impunham regras de bom convívio coletivo
em lugares como escolas, shoppings e praças.
A
espontaneidade, indelicadeza, falta de respeito e educação ao
apenas considerar a si mesmo e não o seu interlocutor tipica do “bom
selvagem” é o que deve ser validado. Afinal, a alta cultura é
algo elitista que deve ser destruído, ou neutralizado no seu valor e
importância social e histórica como algo nefasto, por ser
reproduzido principalmente nas elites econômicas e políticas, como
se apenas esse fato a tornasse demoníaca e algo a ser evitado. E ao
desconstruir esse aspecto da gentileza humana da vida, em nome da
igualdade e de mediocrizar o homem, nos tornamos mais rudes com o
próximo, tornando a vida cinza, mais feia e nosso cotidiano menos
brilhante e menos interessante nas relações com o outro que nos
cerca.
Hoje,
ser gentil e sorrir para o outro é revolucionário, quase um ato
político contra os efeitos nocivos dos excessos da atomização
social. Dizer um “estou bem e você” à alguém pode lhe causar
belas surpresas.