sexta-feira, 25 de abril de 2014

A transgressão de perguntar à alguém desconhecido "tudo bem, e você?"!!!

Na era do individualismo, ser gentil com desconhecidos causa estranhamento


Esses dias, estava eu na fila do restaurante da USP (o famoso "bandejão") quando um amigo me apresenta a outra pessoa, e, ela perguntou a mim a frase corriqueira: "oi, tudo bem?", e eu respondo com naturalidade: "tudo, e com você?". Ao responder dessa forma, essa pessoa ficou bastante surpresa com a minha postura, o que ficou demonstrado no seu olhar à mim, e perguntei o porque do choque. Ele me responde desta forma: "as pessoas nos dias de hoje jamais perguntam "e você?", apenas respondem "tudo bem".
Isso me fez refletir sobre algumas questões importantes, de como as pessoas vem perdendo os modos, a compostura e as maneiras de tratar os seus semelhantes. A deferência com o próximo tem sido cada vez mais relegado ao segundo plano, visto como algo obsoleto, anacrônico, descabido e "careta" por alguns. Em vez de uma deferência rígida a nossa sociedade age com uma indeferência insolente.
Em uma sociedade atomizada, onde o indivíduo tem a possibilidade de se desvincular de seus laços tradicionais e criar e recriar, construir e destruir infindavelmente suas identidades dentro do espaço-tempo limite de sua vida, a tradição e valores também sofrem o mesmo processo de revaloração, redimensionamento e de desvalorização. Isso em seu lado positivo permite que o ser possa ter um leque maior de escolhas de quem ser, do que quer ser e de como deseja se portar e moldar-se. A moda é um exemplo social claro dessa maleabilidade da identidade contemporânea, fruto de uma cultura igualitária que permite a intercambialidade de .
Porém, em seus aspectos peversos, esse desenraizamento do indivíduo, fruto de uma hipermodernidade (discordo do uso do termo “pós-modernidade”, estamos, ao meu ver, vivendo apenas uma nova nuance do processo de modernização, não vivendo uma superação desse processo – talvez de aspectos dele) desenraizadora e atomizante, justamente por ser “fluida”, como diria Zygmunt Bauman, fragmentando as relações tradicionais, também se perde o interesse pelo outro, pois esse ser é fugídio, passageiro na vida de cada um, não mais sendo uma figura presente como componente integrante da vida dos indivíduos, seja por vínculos familiares, hierárquicos, trabalhistas ou sociais.
Essa não-vinculação social tornou-se obsoleto todos os tipos de protocolos, deferências, signos que diferenciam os outros através dos gestos, vestuário, jeito de andar, passando a ser vistos não mais como parte da formação e do lustro intelecto-comportamental do ser, mas apenas símbolos de poder e de diferenciação que cabe serem quebrantados pela sociedade igualizante, porém, não igualitária.
Se um homem durante o Antigo Regime era diferenciado e criado de acordo com o estamento de nascença (os protocolos e ritos nobres da corte como exemplo) e o homem moderno do século XIX e XX pelo mérito de obter uma posição de destaque dentro da sociedade, na sociedade hipermoderna nada disso deve se manter erguido. Tanto a posição de nascimento tanto o mérito são atacados por acadêmicos e o establishment (imprensa, filmes, novelas) como manifestações de uma dominação elitista na sociedade, que deve ser prontamente abolida, ou ao menos restringida ao máximo possível.
O que se vê no lugar de diferenciadores como o nascimento e o mérito é o culto ao homem mediocritas, o homem mediano e medíocre. Para que isso possa se realizar, cabe destruir a ideia das claras diferenciações da alta e baixa cultura, negando em princípio a cultura elevada como “elitista”, “reacionária” e buscando igualar a cultura vulgar (no sentido de comum) ao posto dos grande exemplo a ser seguido e reproduzido. Para isso, na língua, deve desaparecer o diferencial entre o que é culto e coloquial, dizendo ser “preconceito linguístico” ensinar a forma culta, reduzindo o papel da linguagem apenas a comunicação cotidiana. Agora o “nós vai” e “nois vem” passa a ter o mesmo valor do que os mais belos versos camonianos.
Na educação, ensinar às crianças o pensamento mais elevado de filósofos, literários e poetas que o mundo produziu passa a ser visto como uma educação que é “positivista” e “elitista” porque “não dialoga com a realidade destas crianças”. Então, ensinar versos do Mano Brown é o ideal para esse tipo de pensamento, Shekespeare e Homero no máximo, citados como seres distantes que um dia existiram, quase como se fossem seres de outro planeta, não escritores decisivos para a construção narrativa, de arquétipos de personagens e formológica de qual se deriva o pensamento e escrita ocidental.
Na música, letras de funk são elevadas a nível de “voz da periferia que fala da realidade”, enquanto melodias e letras de uma Elis Regina são apenas músicas enfadonhas que merecem ficar no ostracismo.
Com isso, não surpreende que vivemos um período onde a autora desses versos como Eu sei que você já é casado/ mas me diz o que fazer/ Porque quando a piroca tem dona é que vem a vontade de fuder/Então mama, pega no meu grelo e mama/Me chama de piranha na cama/Minha xota quer gozar, quero dar, quero te dar” seja considerada uma “grande pensadora contemporânea”, e que escutemos da boca de estudantes da maior universidade da América Latina, a USP, que fazer funk é tão difícil quanto fazer música clássica...
Se tudo é relativo e perecível, o tratar do outro como ser, e os sistemas organizados pelos homens durante o tempo para garantir que isso aconteça, tais como o protocolo, os atos e diálogos gentis (mesmo que sendo apenas meras formalidades) também o são. ara a hipermodernidade não passa de enfadonho ato que deve ser desconstruído Para igualitarizar as pessoas, como é típico, se mediocriza cada vez mais os homens, ou seja, vamos destruir esses códigos opressores que nos coagiam socialmente a ter um tratamento respeitoso a todos, que nos impunham regras de bom convívio coletivo em lugares como escolas, shoppings e praças.
A espontaneidade, indelicadeza, falta de respeito e educação ao apenas considerar a si mesmo e não o seu interlocutor tipica do “bom selvagem” é o que deve ser validado. Afinal, a alta cultura é algo elitista que deve ser destruído, ou neutralizado no seu valor e importância social e histórica como algo nefasto, por ser reproduzido principalmente nas elites econômicas e políticas, como se apenas esse fato a tornasse demoníaca e algo a ser evitado. E ao desconstruir esse aspecto da gentileza humana da vida, em nome da igualdade e de mediocrizar o homem, nos tornamos mais rudes com o próximo, tornando a vida cinza, mais feia e nosso cotidiano menos brilhante e menos interessante nas relações com o outro que nos cerca.
Hoje, ser gentil e sorrir para o outro é revolucionário, quase um ato político contra os efeitos nocivos dos excessos da atomização social. Dizer um “estou bem e você” à alguém pode lhe causar belas surpresas.

2 comentários:

  1. Lembrei da boa sensação que tive quando estive em Caxambú-MG, na ocasião de minha participação na ANPOCS. Ao sair para comprar algo durante a manhã fui cumprimentado por senhores e senhoras, velhos moradores da cidade. Aquele era outro mundo para mim.

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  2. Pensando a partir de Simmel, poderíamos dizer que um dos aspectos que caracteriza a vida metropolitana é justamente essa atitude blasé, uma atitude de indiferença generalizada, na qual o respeito pelo outro parece ser reduzido ao ato de se manter anônimo.

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